sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Sobre varrer o palco



A peça já havia acabado há uns 40 minutos antes. O restante do pessoal já tinha todo saído do teatro e comiam um cachorro quente na kombi que ficava na esquina, enquanto tomavam uma cervejinha e comentavam sobre a apresentação desta noite.
Apesar da fome, como sempre, eu fiquei por último para arrumar as coisas, ver se estava tudo em ordem. Sabem como é...
Um barulho me chamou a atenção. Lá em cima na cabine de luz, agora toda escura, alguma coisa pareceu ter bruscamente tropeçado.
- Peroba, é você?
Mas uma risada rouca e alta vinda lá de fora deixou bem claro que não. “Ora, deve ter caído alguma coisa só isso”. Pegue a vassoura e me pus a varrer o palco.
Novamente a estranheza. Parecia nitidamente que havia alguém me observando lá de cima. Agora, mais ainda, a sensação de medo dava lugar a uma morna curiosidade. Não tenho medo de assombração mesmo.
- Oi!
- Uaaaaaaiiii!!
Dei um pulo de uns dois metros.
- Que baita susto o senhor me deu! Isso é maneira de chegar assim assustando os outros?
- Me desculpe, meu jovem. Eu não tinha a intenção.
- O senhor é faxineiro aqui do teatro?
-Não – respondeu o sujeito magro de cabelos profundamente negros e meio ensebados – Sou ator também.
- Ah! O senhor está em temporada aqui também?
- Não, não. Mas é que tenho muitas boas lembranças daqui, esse teatro me é muito querido.
- Ah também acho! A acústica é o máximo, e tem lugares o suficiente, nem de mais, nem de menos.
Ele me olhou meio triste.
- Tenho que pedir pra que você mantenha isso em segredo, que não quero criar confusão com o dono daqui, mas gosto tanto desse teatro que às vezes venho aqui a noitinha só pra varrer o palco.
Eu o olhei por um tempo. Há uma beleza silenciosa em varrer o palco. É quase um sacramento. É quando um ator está comungando com a humildade. Cuidando do seu espaço que é sagrado, desprovido das pavonices do ego. Apenas com amor.
De alguma forma, nós nos entendemos, eu e ele, porque são poucos os atores que compreendem esse mistério delicioso. E sua tristeza vinha daí. Porque tantos atores usam aquele espaço apenas como uma meretriz, para encher seus egos e depois vão embora deixando tudo sujo e zoneado. Mas aquele também é o meu espaço sagrado e eu sempre vou cuidar dele.
Nada disso foi falado. Nós apenas nos olhamos e compartilhamos dessa sabedoria.
- Não se preocupe, senhor. Não vou dizer nada.
- Você vai ficar em temporada quanto tempo aqui?
- Três meses. – Respondi.
Ele olhou a vassoura na minha mão.
- Bem, então acho que posso ficar despreocupado de vir por uns tempos. Já vi que o teatro está em boas mãos. – ele sorriu.

Apoiei a vassoura, e peguei minha mochila para ir. A barriga roncava.
- Pode confiar e vou cuidar muito bem dele! Boa noite.
- Boa noite.
Já estava na porta, quando me virei para convidá-lo para vir assistir a peça (que cabeça a minha, de esquecer isso!), e ele não estava mais lá. Talvez tivesse ido embora pela coxia, sei lá. Que figura.
Sai correndo porta a fora para encontrar meus amigos e comer meu cachorro quente também. Estava com tanta pressa que simplesmente não reparei que nas fotografias no salão de entrada do teatro havia uma que continha o rosto do meu recém-amigo de vassoura, embaixo lia-se: “Ferdinando Torquato Ferraz 1908-1944”.