quarta-feira, 9 de abril de 2008

O porquê de fazer teatro. (ou O beijo)


Um belo dia, na estrada da minha vida eu caminhava perenemente. Num daqueles dias em que tudo conspira pra te deixar vagamente idiota. Enfim, caminhava eu, pela estrada da vida, feliz e assobiando qualquer canção daquelas com melodias melosas que a gente ouve quando acorda e que ficam na cabeça o dia todo. Feliz. Sim, acho que estava feliz.

Eis que do nada, como que por magia, Dionísio em pessoa me aparece à frente. Figura singular, viu?! Não satisfeito em me aparecer do nada, ante a minha reação de surpresa, ele apenas sorriu, e em seguida atirou-se contra mim e me beijou.

Não foi um beijo romântico. Eu diria que foi até um tanto quanto violento. Mas é inegável: foi bom. Um segundo em que passam mil coisas na sua cabeça, como uma descarga elétrica.Um raio. E do nada, como veio, se foi. E eu fiquei ali, parado, que nem um dois de paus, olhando fixamente pra lugar nenhum como se interrogasse o vazio, por algo que ele não me fez.

Passaram-se dias, meses então. Eu, exatamente como acontece com quem se apaixona, primeiro neguei veementemente. Era absurdo.Um disparate. Provavelmente um delírio da minha cabeça. Um delírio simplesmente arrebatador, como só os gênios e os loucos podem experimentar. Mas como eu não era nem gênio, nem louco, só podia negar e dizer que fora um delírio momentâneo.

Quase dois anos se passaram, desde o fatídico beijo. E seguindo, como alguém que tivesse visto a verdade mas não pudesse contar ao mundo, eu ia. Tentei enveredar pela publicidade, pelo direito, por letras (português-latim), e até por psicologia. E não é que não desse certo. Eu até conseguia as vagas em universidades publicas, cargos em funcionalismo publico. Mas sempre havia algo. Não fazia a matricula, não tinha o documento tal. Não era chamado a tempo. Muito tempo depois fui entender que, no fundo era eu mesmo mancumunado com o mundo, me sabotando. Ficava sempre lá no fundo aquela sensação de que sabia de algo inconfessável. E agora me sobrevinha uma febre: sensação de que estava me enrolando e perdendo tempo.

Nesses tempos eu acordava de noite no pesadelo. Um homem todo de branco com discretos chifres de carneiro me beijava e ria. Ria a valer. Ás vezes, ele me punha um nariz de palhaço e em seguida me dava um belo tapa na cara. Este tapa quase sempre se mesclava com um som louco, que crescia, e se tornava ensurdecedor até me acordar: eram aplausos.

Quando ele vinha, sempre vinha louco. Ás vezes em turba barulhenta. Talvez fosse seu séquito que aplaudisse tão alto. E ria. Nunca dava tempo de nada.

Um dia, me apareceu sem turba e acompanhado de uma única pessoa que vinha, de certa forma, tentando subjugá-lo. Era ninguém menos que Apolo. Por fim entraram os dois em acordo e Dionísio aceitou me ouvir.

Eu tentei argumentar de todas as formas. Expliquei que não tinha talento, que essas coisas nascem com você. Depois expliquei que não tinha contatos no meio artístico e que seria difícil conseguir emprego. Por fim disse que precisava ter dinheiro na vida pra ser feliz. Argumento baixo, admito, mas honesto.

Eu falava sem parar e Dionísio me ouvia. Mas ria. Já Apolo contra-argumentava sistematicamente. Explicou-me que quem faz o que ama, faz bem e por isso alcança reconhecimento. Me mostrou que no mundo atual no Brasil, não importa a carreira, vai ser difícil arrumar emprego em qualquer área. Me disse que dinheiro é consequência de bom trabalho e dedicação. Por fim Apolo me deu uma das lições mais importantes. Me explicou que o talento não nasce com ninguém. Está em amar a profissão. Esse é o verdadeiro talento. Amor e dedicação incondicional. Não há erro, ou incapacidade que resistam a isso.

A essas alturas, minha cabeça ia a mil, havia qualquer coisa de suspensão ali. Estava acabado: Apolo me “desargumentou” completamente. Dionísio havia parado de rir. Instalou-se uma atmosfera de seriedade, tensão e iniciação. Por fim, Dionísio sorriu e perguntou:

- Você ama o Teatro?

Com lágrimas nos olhos deixei-me cair de joelhos. Completamente entregue à minha sorte e paixão.

- Amo!

Eles me levantaram. Dionísio se aproximou de mim:

- Incondicionalmente?

- Incondicionalmente – respondi.

Ele então me abraçou e sussurrou no meu ouvido:

- Então apesar de tudo você será feliz.

E com essa nota de mistério empurrou-me com a ponta dos dedos. Eu cai de alturas imensas. E acordei mais uma vez.

Poucos dias depois eu entrava pro Tablado, e em alguns meses, entrava na Martins Pena.

Nunca mais consegui deixar o teatro. Mergulhei em águas profundas e caóticas. Se tornou parte de mim, onde quer que eu vá. Uma parte simplesmente grande demais, e por isso mesmo, impossível de ser deixada para trás.

Porque fazer teatro? Por amor. Pelo amor de todo dia.